Lacraia




"Hoje me deu vontade de te puxar o saco, ou como se diz na corte: "prestar uma homenagem", de te dedicar um poema, das mãos de um dos nossos. Mas não se engane meu irmão, camarada, meu lirismo é machucado e acompanhado de sarcasmo.
Contudo, é sempre bom jogar as palavras de Mestre Manoel, no mundo, afora isso, trata-se de um sarcasmo infantil, já que sou eu, tomada por um espírito juvenil, menciona
ndo sua infância, através das palavras do Manoel de Barros, falando da infância dele, inventada é claro."  

Sabrina Vareiro

LACRAIA

Um trem de ferro com vinte vagões quando descarrila,
ele sozinho não se recompõe. A cabeça do trem ou seja
a máquina, sendo de ferro não age. Ela fica no lugar.
Porque a máquina é uma geringonça fabricada pelo
homem. E não tem ser. Não tem destinação de Deus. Ela
não tem alma. É máquina. Mas isso não acontece com a
lacraia. Eu tive na infância uma experiência que
comprova o que falo. Em criança a lacraia sempre me
pareceu um trem. A lacraia parece que puxava vagões.
E todos os vagões da lacraia se mexiam como os vagões
do trem. E ondulavam e faziam curvas como os vagões do trem. Um dia a gente teve a má ideia de descarrilar
a lacraia. E fizemos essa malvadeza. Essa peraltagem.
Cortamos todos os gomos da lacraia e os deixamos no
terreiro. Os gomos separados como os vagões da máquina.
E os gomos da lacraia começaram a se mexer. O que é
a natureza! Eu não estava preparado pra assistir
aquela coisa estranha. Os gomos da lacraia começaram
a se mexer e e se encostar um no outro para se emendarem.
A gente, nós , os meninos não estávamos preparados
para assistir àquela coisa estranha. Pois a lacraia
estava se recompondo. Um gomo da lacraia procurava o
seu parceiro parece que pelo cheiro. A gente como que reconhecia a força de Deus. A cabeça da lacraia estava
na frente e esperava os outros vagões se emendarem.
Depois, bem mais tarde eu escrevi este everso: Com
pedaços de mim eu monto um ser atônito. Agora me indago
se esse verso não veio da peraltagem do menino. Agora
quem está atônito sou eu.


P.S: Ela me mandou isso pois tenho pavor de lacraias. 

Kicha








Der...
Kicha. Ist meine Kätzchen
Und ich leibe zie
Sehr. Schätzen

























Haikai de Inverno

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E sua mão sem luva
só tocou meu rosto agora
O frio aquece então...

                                                               à Kika


































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Arseni Tarkóvski




Pai de Andrei Tarkóvsk, que realizou Stalker, um dos filmes que mais gosto. 

Arseni é poeta e ator russo. Nasceu em Elisavetgrad  no dia 24 de junho de 1907. Grande parte da sua vida foi vivida em Moscou quando desencarnou em 27 de maio de 1989.


Um poema dele sem título que é declamado pelo personagem Stalker durante o filme. Numa cena, Stalker diz que é de autoria do personagem "Porco-Espinho" que segundo ele é seu mestre e que lhe havia ensinado "tudo o que sabe"  sobre a vida espiritual. O poema e este grafite num muro de um bairro decadente em Moscou de alguma maneira ficaram dialogando na minha cabeça por esse dias:


                                                                      



Agora o verão se foi
E poderia nunca ter vindo.
O sol está quente.
Mas tem de haver mais.

Tudo aconteceu,
Tudo caiu em minhas mãos
Como uma folha de cinco pontas,
Mas tem de haver mais.

A vida me recolheu
À segurança de suas asas,
Minha sorte nunca falhou,
Mas tem de haver mais.

Nem uma folha queimada,
Nem um graveto partido.
Claro como um vidro é o dia,
Mas tem de haver mais.




Alterpsicografia

Gerard Richter "Mediation" - 1986


O poeta é um tradutor
Não parte só de sua mente
sonhos do Mundo, Homem e Amor
Aquilo que tão pouco entende


































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Na Conversa Elementar:

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(Deitamos na terra e ficamos sem ar)






(nossa mão no bolso após?)



(amou-me) e  (amei) à sós




(meia luz)

                          
                 
                  
                            
                               










 - as coisas se passam em nível lunar -








                     )


           





          ><>       <><
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André Vareiro.




































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Haikai de Outono

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Um sorriso aberto
No fim da tarde, sem notar
A Ki compõe um verso




À Kika 


























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Novos Títulos.

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Acrescentei novos títulos (segundos; da direita) em cada capítulo. Os antigos (primeiros; da esquerda) se mantêm. Também há agora uma citação que foi inspiradora na construção ou exprime a ideia central do cap. Acompanham o começo de cada cap. O motivo disso tudo é a busca de maior clareza e coesão ao conteúdo junto a sequência dos poemas.


Assim:




Título: 


Coração, Etc. 


Cap. 1:  


Moscas 

ou Miolos


"A Metafísica é uma consequência de estar mal disposto"
                                                                            
                                           Álvaro de Campos, Tabacaria.




Cap. 2


Seixos 

ou Sêmens


"O que disse Bugrinha: Por dentro de nossa casa passava um rio inventado.
  O que nosso Avô falou: O olho do gafanhoto é sem princípios."


  Manoel de Barros, Livro sobre Nada.




Cap. 3


Cílios 

ou Lábios...




"Carente de ternura
Eu fiz tanta loucura
Andei de mão em mão
Nem ao menos minha roupa eu trocava
Pra curtir minha paixão"

Paulinho da Viola, Carnaval da Paixão.




Cap.4 


Ecos 

ou Ocos?


"Quanto mais sólida a mente, maior a proteção dos deuses"


Miao-lo , Tien-Tai  




Cap. 5 


Dentes 

ou Becos?




"Amada vida, minha morte demora.
Dizer que coisa ao homem,
Propor que viagem? Reis, ministros
E todos vós, políticos,
Que palavra além de ouro e treva
Fica em vossos ouvidos?
Além de vossa RAPACIDADE
O que sabeis
Da alma dos homens?
Ouro, conquista, lucro, logro
E os nossos ossos
E o sangue das gentes
E a vida dos homens
Entre os vossos dentes"   (...)


Hilda Hilst, Poemas aos Homens do Nosso Tempo




























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Galo Galo

Gabriel Metsu - The Dead Cockerel


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O galo
no salão quieto.


Galo galo
de alarmante crista, guerreiro,
medieval.




De córneo bico e
esporões, armado
contra a morte,
passeia.




Mede os passos. Pára.
Inclina a cabeça coroada
dentro do silêncio:




—— que faço entre coisas ?


—— de que me defendo ?




Anda.
No saguão.
O cimento esquece
o seu último passo.




Galo: as penas que
florescem da carne silenciosa
e duro bico e as unhas e o olho
sem amor. Grave
solidez.
Em que se apóia
tal arquitetura ?




Saberá que, no centro
de seu corpo, um grito
se elabora ?
Como, porém, conter,
uma vez concluído,
o canto obrigatório ?




Eis que bate as asas, vai
morrer, encurva o vertiginoso pescoço
donde o canto rubro escoa




Mas a pedra, a tarde,
o próprio feroz galo
subsistem ao grito.




Vê-se: o canto é inútil.




O galo permanece — apesar
de todo o seu porte marcial —
só, desamparado,
num saguão do mundo.
Pobre ave gurreeira!




Outro grito cresce
agora no sigilo
de seu corpo; grito
que, sem essas penas
e esporões e crista
e sobretudo sem esse olhar
de ódio,
não seria tão rouco
e sangrento




Grito, fruto obscuro
e extremo dessa árvore: galo.
Mas que, fora dele,
é mero complemento de auroras.



 Ferreira Gullar






















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Élan

Rio Miranda-MS



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Carne,


Cometi agressões físicas no passado
em mulheres, idosos e deficientes do corpo
Torturei os bicos das aves, violei os rituais aos deuses
Trai, menti e fugi. Pratiquei com o diabo a cópula.
Algum tipo de sexo medonho, apodrecido...


E o que há do eu agora?



Humus, em todo as terras que pisem os peś.
Convivi com escorpiões, me tornei um.
Usei drogas telepáticas, estive em águas lunares...


Tudo no rio, sempre no rio. À margem.




"Filho, o leito não dá pé!" 
Disseram meus antepassados.





E agora, o que faço passeando
novamente entre outros?





No todo, não há ruptura. Nado.
Vivo em sonhos e de pé também
Num mesmo livro único, infinito
"No fundo, tudo é o mesmo" ¹




O mesmo texto:



Continuo sonhando com o Rio Miranda.
Com as rãs, as crianças, as senhoras de cem anos...
Com o sorvete e a bexiga amarela que comprei com o troco roubado 
do pão da Dona Mina, minha avó materna. Foi quando tomei o primeiro tapa. Chorei.


Só que em seguida a velha me explicou um caminho à sua maneira
e mostrou esse mesmo Rio Miranda que sonho e só me lembro agora.

Agora, agora
na claridade do quintal lá fora...

Está.






 André Vareiro.















¹ Pessoa em: "O entendimento dos símbolos..." Nota preliminar do livro Mensagem




















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