Haikai de Inverno

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E sua mão sem luva
só tocou meu rosto agora
O frio aquece então...

                                                               à Kika


































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Arseni Tarkóvski




Pai de Andrei Tarkóvsk, que realizou Stalker, um dos filmes que mais gosto. 

Arseni é poeta e ator russo. Nasceu em Elisavetgrad  no dia 24 de junho de 1907. Grande parte da sua vida foi vivida em Moscou quando desencarnou em 27 de maio de 1989.


Um poema dele sem título que é declamado pelo personagem Stalker durante o filme. Numa cena, Stalker diz que é de autoria do personagem "Porco-Espinho" que segundo ele é seu mestre e que lhe havia ensinado "tudo o que sabe"  sobre a vida espiritual. O poema e este grafite num muro de um bairro decadente em Moscou de alguma maneira ficaram dialogando na minha cabeça por esse dias:


                                                                      



Agora o verão se foi
E poderia nunca ter vindo.
O sol está quente.
Mas tem de haver mais.

Tudo aconteceu,
Tudo caiu em minhas mãos
Como uma folha de cinco pontas,
Mas tem de haver mais.

A vida me recolheu
À segurança de suas asas,
Minha sorte nunca falhou,
Mas tem de haver mais.

Nem uma folha queimada,
Nem um graveto partido.
Claro como um vidro é o dia,
Mas tem de haver mais.




Alterpsicografia

Gerard Richter "Mediation" - 1986


O poeta é um tradutor
Não parte só de sua mente
sonhos do Mundo, Homem e Amor
Aquilo que tão pouco entende


































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Na Conversa Elementar:

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(Deitamos na terra e ficamos sem ar)






(nossa mão no bolso após?)



(amou-me) e  (amei) à sós




(meia luz)

                          
                 
                  
                            
                               










 - as coisas se passam em nível lunar -








                     )


           





          ><>       <><
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André Vareiro.




































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Haikai de Outono

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Um sorriso aberto
No fim da tarde, sem notar
A Ki compõe um verso




À Kika 


























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Novos Títulos.

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Acrescentei novos títulos (segundos; da direita) em cada capítulo. Os antigos (primeiros; da esquerda) se mantêm. Também há agora uma citação que foi inspiradora na construção ou exprime a ideia central do cap. Acompanham o começo de cada cap. O motivo disso tudo é a busca de maior clareza e coesão ao conteúdo junto a sequência dos poemas.


Assim:




Título: 


Coração, Etc. 


Cap. 1:  


Moscas 

ou Miolos


"A Metafísica é uma consequência de estar mal disposto"
                                                                            
                                           Álvaro de Campos, Tabacaria.




Cap. 2


Seixos 

ou Sêmens


"O que disse Bugrinha: Por dentro de nossa casa passava um rio inventado.
  O que nosso Avô falou: O olho do gafanhoto é sem princípios."


  Manoel de Barros, Livro sobre Nada.




Cap. 3


Cílios 

ou Lábios...




"Carente de ternura
Eu fiz tanta loucura
Andei de mão em mão
Nem ao menos minha roupa eu trocava
Pra curtir minha paixão"

Paulinho da Viola, Carnaval da Paixão.




Cap.4 


Ecos 

ou Ocos?


"Quanto mais sólida a mente, maior a proteção dos deuses"


Miao-lo , Tien-Tai  




Cap. 5 


Dentes 

ou Becos?




"Amada vida, minha morte demora.
Dizer que coisa ao homem,
Propor que viagem? Reis, ministros
E todos vós, políticos,
Que palavra além de ouro e treva
Fica em vossos ouvidos?
Além de vossa RAPACIDADE
O que sabeis
Da alma dos homens?
Ouro, conquista, lucro, logro
E os nossos ossos
E o sangue das gentes
E a vida dos homens
Entre os vossos dentes"   (...)


Hilda Hilst, Poemas aos Homens do Nosso Tempo




























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Galo Galo

Gabriel Metsu - The Dead Cockerel


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O galo
no salão quieto.


Galo galo
de alarmante crista, guerreiro,
medieval.




De córneo bico e
esporões, armado
contra a morte,
passeia.




Mede os passos. Pára.
Inclina a cabeça coroada
dentro do silêncio:




—— que faço entre coisas ?


—— de que me defendo ?




Anda.
No saguão.
O cimento esquece
o seu último passo.




Galo: as penas que
florescem da carne silenciosa
e duro bico e as unhas e o olho
sem amor. Grave
solidez.
Em que se apóia
tal arquitetura ?




Saberá que, no centro
de seu corpo, um grito
se elabora ?
Como, porém, conter,
uma vez concluído,
o canto obrigatório ?




Eis que bate as asas, vai
morrer, encurva o vertiginoso pescoço
donde o canto rubro escoa




Mas a pedra, a tarde,
o próprio feroz galo
subsistem ao grito.




Vê-se: o canto é inútil.




O galo permanece — apesar
de todo o seu porte marcial —
só, desamparado,
num saguão do mundo.
Pobre ave gurreeira!




Outro grito cresce
agora no sigilo
de seu corpo; grito
que, sem essas penas
e esporões e crista
e sobretudo sem esse olhar
de ódio,
não seria tão rouco
e sangrento




Grito, fruto obscuro
e extremo dessa árvore: galo.
Mas que, fora dele,
é mero complemento de auroras.



 Ferreira Gullar






















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Élan

Rio Miranda-MS



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Carne,


Cometi agressões físicas no passado
em mulheres, idosos e deficientes do corpo
Torturei os bicos das aves, violei os rituais aos deuses
Trai, menti e fugi. Pratiquei com o diabo a cópula.
Algum tipo de sexo medonho, apodrecido...


E o que há do eu agora?



Humus, em todo as terras que pisem os peś.
Convivi com escorpiões, me tornei um.
Usei drogas telepáticas, estive em águas lunares...


Tudo no rio, sempre no rio. À margem.




"Filho, o leito não dá pé!" 
Disseram meus antepassados.





E agora, o que faço passeando
novamente entre outros?





No todo, não há ruptura. Nado.
Vivo em sonhos e de pé também
Num mesmo livro único, infinito
"No fundo, tudo é o mesmo" ¹




O mesmo texto:



Continuo sonhando com o Rio Miranda.
Com as rãs, as crianças, as senhoras de cem anos...
Com o sorvete e a bexiga amarela que comprei com o troco roubado 
do pão da Dona Mina, minha avó materna. Foi quando tomei o primeiro tapa. Chorei.


Só que em seguida a velha me explicou um caminho à sua maneira
e mostrou esse mesmo Rio Miranda que sonho e só me lembro agora.

Agora, agora
na claridade do quintal lá fora...

Está.






 André Vareiro.















¹ Pessoa em: "O entendimento dos símbolos..." Nota preliminar do livro Mensagem




















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Garoa Again

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Escuto um som vindo da escada, no escuro. O gato? Sussurros? Não, amanhã enterram-me. Na primeira esquina antes dos trinta. Os médicos e os especialistas nada sabem do que está escrito em minhas mãos. Que há areia todos sabem, como em todas as outras mãos também. Talvez em algumas noites quero viver menos, mas muitas vezes percebo que só é o sono vindo aos poucos. Aquele sono acontecendo em dias frios e úmidos. Acompanhando a simples distância de um pensamento triste, que no degrau, faz ruído.




 André Vareiro.



















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Sesta Asa

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Sonhei com o ácido 
desoxirribonucleico 
num cochilo após ao almoço. 

Por hora, tudo é, verso. Delineia-se inteiro, o sangue. 
Quase um herdeiro. Sou quase um herdeiro agora. 

Na gema do Sol ou em um núcleo de um ovo
após ao meio-dia acordo um pássaro

                                                                                 de novo

Cândido, meu avô, dizia:
- Esse sono faz bem pra cabeça.

         E  voo...            




André Vareiro.



























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Haicai ao gato

Ballet Class Visitor  by Deborah Julian



No Antigo Egito, o gato doméstico, trazido do sul ou do oeste por volta do ano de 2.100 a.C., é considerado um ser divino, de tal ordem que, se um deles morrer de morte natural, as pessoas da casa raspam as sobrancelhas em sinal de luto. O gato é um símbolo que assumiu múltiplos significados entre as diferentes civilizações, na simbologia. Segundo uma tradição celta, ele teria nove vidas. Posteriormente, durante a Idade Média, o gato passou a ter apenas sete vidas. Animal misterioso associado aos poderes da lua, ao mundo da magia e às bruxas, os machos pretos eram a personificação do diabo. Na Cabala e no budismo o gato representa a sabedoria, a prudência e a vivacidade.



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a gata olha fixo
numa tarde alaranjada
qual segredo oculta?



















André Vareiro. 
In: Haicai do poema "Oito";  Livro "Coração, etc." pg. 15

ágil senso da propriedade


.
- Joelle Delhovren -




cai a moeda no
assoalho seco do
ônibus um
baque durável de
25 cents

aqui ali alguns
homens naturalmente levam a
mão ao bolso próximo ao
peito


profundo contam
um desfalque
epidérmico


o gesto todo
prevenção para o próximo
destino


Cândido Rolim























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Conjunto Habitado

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Um pouco depois da meia-noite. Por de trás de uma janela próxima, olho atrás de certo movimento e vida em janelas distantes. Prédios. Meus amigos ouvem o som de ventiladores e canções antigas em volume baixo em outro lugar próximo as suas camas? Imagino apenas. Fevereiro muitas vezes é um mês bonito. Então em meio a beleza possível alguém chega em seu sofá depois de quilômetros de tráfego. Termina seu trabalho. Seu trabalho agora é pintar trabalhos que fez durante as últimas horas. O pensamento de certas pessoas é alegre ao fim do dia. Alegro-me, hoje entre outras coisas encontrei pessoas alegres com sorrisos de cansaço e contentamento. No seu jeito próprio da alegria pensam pequenas montanhas. Ela pensa montanhas e as faz em cores vivas. Ouço o sussurro das palavras em meu corpo e procuro traçar o relevo. Cerâmica, e novamente pequenas montanhas.  Lá do outro lado em outro prédio um homem passa e apaga a lâmpada do corredor. Durmo, apenas. Ao conjunto de sons e desenhos de outros.


























André Vareiro.

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Extinção

Jean-Michel-Basquiat

Riding With Death 1988





O lobo-guará é manso
foge diante de qualquer ameaça
é solitário
avesso ao dia, tímido

detesta as cidades
onde quase sempre é atropelado
onívoro, com mandíbulas fracas
come pássaros, ratos, ovos, frutas

às vezes, quando está perdido,
vasculha latas de lixo nas ruas
engasga ao mastigar garrafas
de plástico ou isopores

se corta e ou morre ao morder
lâmpadas fluorescentes
ou engolir fios elétricos
morre ao lamber inseticidas

ou restos de tinta
ou ao engolir remédios vencidos
ou seringas e agulhas
descartáveis

dócil, sem astúcia,
é facilmente capturado e morto
por traficantes de pele
quando então, uiva




Régis Bonvicino







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Saliva 1

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Labirinto. A gestante entra no mercado central, caminha na seção de carnes entre peças de bois, porcos e aves: cheiro cru. Lembra de suas constantes hemorroidas¹ pois da última vez que experimentou havia um dedo-de-moça por engano. Melhor seria consumir fibras... Ao diabo! Deseja um prato. Dessa vez assim, uma peça de maminha recheada ao forno, batatas pequenas em torno. Macia. Tomilho, manjericão picado a gosto e cores de sangue empolgam. Fará mais, mas dessa vez num ataque discreto, apenas beliscadas. "Meu filho não vai nascer uma anomalia" Jura em voz baixa, também que vai manter o peso, só está de poucos meses. E já mastigaria um búfalo... 




¹ O obstetra de Carla Soares comentou que é comum por um aumento do volume sanguíneo e da pressão exercida nas veias que se situam abaixo do útero, devido ao peso do feto.




























André Vareiro.

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