Via Férrea

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Ainda escuro, bem antes da manhã nascer, Joel chegou à companhia de transportes. Blá blá blá matinal. Apesar da tentativa em parecer contente ao ver os rostos habituais, vinha de mal humor por ter acordado mais uma vez duas horas antes do necessário. O motivo era a vizinha, cuja voz desafinada e estridente chegava aos seus ouvidos logo cedo. Perdia o sono quando ouvia o canto despropositado. Aquele hino da igreja antes mesmo do sol dar as caras...  Aliás, o maquinista nunca foi dos mais risonhos, já embrutecido por quase uma década de profissão ruidosa, naquela hora e sob tal circunstância fez  seu costume o disfarce de um sorriso amarelo. Nesse dia, com certo custo, evitava dar na mostra o quanto estava ranzinza. Justamente por ser de todo avesso a ideia de incomodar os outros, detestava incômodos do tipo. Ainda mais em plena madrugada de segunda-feira por uma velha fanática com um parafuso a menos. É abusar do santo pedir uma migalha de sossego?
  O fato é que não via um meio de acabar de vez com a cantoria. Naquele estado de raiva qual palavra pode alguém dizer aquela dona, fraca dos miolos? A infeliz vivia praticamente sozinha na casa dos fundos. O marido não se preocupava. Pense num sujeito aposentado cuja única inquietação que parecia ter (sem contar a cana) era a dupla: jogo do bicho e dominó; Pra completar, os três filhos, que se foram todos a alguns anos, raramente a visitavam. Exceto quando apareciam com o nobre intuito de pedir um dinheirinho emprestado. Mas o que o deixava de mãos atadas não era bem o infortúnio, e sim a boa disposição e estima que a velha demonstrava desde que ele se mudou pra lá com a esposa. A pobre realmente o tinha em consideração! Costumava lhe dizer: "Rapaz, o sofrimento do justo é pedagogia, e não castigo". Deus do céu... Sendo assim, disfarçar o aborrecimento parecia ser o único remédio. Enfim, "Bom dia" respondeu Joel aos colegas na central ferroviária.
  A contrariedade de praxe e o trabalho de sempre.  Após assinar o ponto junto aos outros funcionários e trocar mais algumas poucas palavras com o diretor, se dirigiu a cabine isolada. Ao primeiro alcance de sua vista apenas trilhos, alavancas e botões que fazem o veículo se mover. Nem mesmo ouve o que os usuários falam durante as viagens, limita-se a informar por meio do alto-falante o nome da estação. Simples, quando no percurso não há problemas, sua existência normalmente nem é percebida. Às vezes lhe fazem menção, quando alvo de alguma chacota no interior dos vagões. Como quando é dito no alto-falante às seis da manhã, com entonação de secretária: "Favor não colocar os pés nos bancos, respeitem os outros passageiros". Em seguida um rapaz comenta: "Ó que otário esse maquinista, onde vai ter banco pra por o pé  numa hora dessa?" Por não ouvir, sequer desconfia da tiração de sarro. Mas, apesar de tudo, no fundo realmente gosta do ofício. Ainda que um tanto áspero, Joel preza a tranquilidade, e ali na maior parte do tempo, a tem. 
  Nesse dia operava o trem como de costume, lotando de estação a estação. Nas portas dos vagões de ferro aquele sobe e desce de gente apressada e muitas vezes nervosa. Da cabine onde se encontrava, notava-se toda espécie de movimentação: empurrões, marreteiros, cotovelos, um guarda-chuva derrubado no vão da plataforma, atrasados segurando portas pra outros atrasados entrarem antes da chegada do guarda, etc. Nada de surpreendente. O que era ótimo, pois sem nenhuma alteração no trajeto poderia ficar ali, despreocupado. Mesmo depois de tantos anos de serviço não se entediava com a viagem, sempre havia algo novo pra se observar. Desde um pássaro voando em frente a locomotiva, até gente fazendo escondida fazendo no meio do mato. E fazendo o que? Putaria. Sem contar a molecada fumando maconha perto do trilho. Quando a estação fica próxima a alguma escola, a cena é bastante comum. A respeito dessas coisas, dir-se-ia que servem de entretenimento, contudo elas não se tratam apenas de distrações, pelo contrário, são até mesmo um modo de se manter alerta as instruções de marcha, horários, sinalização da via férrea, ou seja, tudo que deve ser feito e cuidado durante o percurso.
 O trem viajava a uma velocidade média de setenta quilômetros por hora, às vezes um pouco mais. Assim que a plataforma estava próxima, o maquinista desacelerou pra que pudesse parar no lugar correto indicado nas placas da estação. Dessa maneira, tudo vinha sendo feito do modo mais corriqueiro e previsível, entretanto, de súbito Joel ficou pasmo quando bem a sua frente foi testemunha de uma cena horrorosa. Com o trem em movimento de repente um homem saltou em sua direção, "puta-que-o-pariu!!" diante dos seus olhos atravessou um corpo ainda vivo com destino a todo o peso e violência da máquina. No desespero e por reflexo tentou a freagem no mesmo instante em que viu a pessoa despencar da plataforma. Mesmo tento a certeza de que acionar aquela alavanca vermelha do freio seria inútil desejava com toda a sua força evitar a tragédia. Impossível. Nesse intervalo de segundos já ouvira um estrondo horrendo confirmando a morte inevitável e aquele som da carne humana e dos ossos sendo esmagados brutalmente não deixavam dúvidas. A enorme composição de metal trepidou quando o pequeno corpo foi arrastado pelas rodas do trem por quase vinte metros. Agonia. No choque ainda ouviu o grito abafado do homem no exato e derradeiro instante. Era um dia frio de junho, sem chance de esquecer aquele quadro mórbido. Muito sangue. As partes amputadas que via da janela da cabine... Alguns pedaços do corpo desfeito ficaram suspensos pelos galhos da vegetação paralela aos trilhos. Dentro dos primeiros vagões e na plataforma, é claro, havia o furor causado pela curiosidade e espanto dos passageiros. Naquele dia, início da semana útil, por alguns longos minutos Joel permaneceu atônito, até o momento que foi preciso anunciar no alto-falante o porquê da imobilidade do trem. Com a voz exitante, sem nenhuma determinação, declarou: " Esta composição não prestará mais serviço, devido... ...  ao suicídio do usuário." Suicídio... Enfatizou a palavra, e sem saber bem o que dizer, dado o nervosismo da hora, foi o mais formal possível. De alguma maneira, talvez se diga involuntária, sentiu-se culpado da morte que havia acabado de presenciar mais do que ninguém.
  Se passou um mês e os detalhes do que aconteceu volta e meia vinham a sua consciência. É verdade que o enxergou brevemente, mas lembrava bem da aparência do homem. Usava uma camisa social azul desbotada de manga cumprida arregaçada no braço , por fora das calças jeans. Possuía o aspecto comum de grande parte daqueles que utilizavam o transporte coletivo naquele horário: estatura média, cabelo cortado curto, a barba feita, pele morena e um pouco queimada de sol. Era assim, de relance a imagem da vítima passava em sua cabeça, se repetindo em flashes. Afinal, visto a gravidade, o fato era extremamente recente e a memória permanecia viva. Na data fatídica, pediu dispensa pois não conseguia continuar operando a máquina e de pronto foi substituído por um colega de folga. Já tinha ouvido falar diversas vezes de acidentes dessa natureza através de outros maquinistas. Mas sempre agradecia pela sorte de nunca ter passado por isso nos últimos nove anos em que trabalhou ali. Inclusive havia um deles que foi testemunha de desastre igual por duas ocasiões, e pior, isso em menos de um ano. Lembrou da época em que ouviu essa história e disse a si mesmo que se fosse com ele mudaria de emprego. Bom, até aquele dia acontecera apenas uma vez. Logo, continuou trabalhando. Nesse tempo só uma coisa mudou em sua rotina. Por uma razão desconhecida, não acordava mais antes do horário ajustado no despertador do celular. No começo achou estranho e ainda sim dormia mal por causa do acidente que o deixava em sobressalto. Depois se habitou e achou bom. Mas, na realidade, o silêncio na casa ao lado... Era de fato incomum. Do que houve  nunca soube com certeza. Também não ousou tocar no assunto. A vizinha continuava lhe tratando muitíssimo bem, embora sorrisse diferente. Nunca mais ouviu aquela senhora cantar os seus hinos já bem tarde da noite. Só às vezes percebia, não sabendo se no sonho ou não, uma voz muito baixa, intercalada e quase triste, como aquelas que se ouve em orações. Devia ser dela... Pensava.












































André Vareiro.



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2 comentários:

  1. ficou sendo de todos, afinal.

    sempre pensei nisso: 'No choque ainda ouviu o grito abafado do homem no exato e derradeiro instante.'

    muito bonito e bem feito.

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